Nem a burocracia aguenta a burocracia
Regras mal desenhadas, excesso de controles, falta de motivação e medo - sim, medo de ser envolvido em suspeitas de corrupção. É assim o dia a dia dos funcionários públicos responsáveis por tocar a máquina estatal brasileira.
Anselmo Tozi, secretário de Saúde do Espírito Santo
Três meses após assumir a direção do Instituto de Matemática e Computação da Universidade Estadual de Campinas, o físico Jayme Vaz Júnior decidiu instalar um elevador no prédio da faculdade.
Na época, em fevereiro de 2007, as escadarias do edifício de quatro andares causavam enorme constrangimento a uma estudante de pós-graduação que se locomovia em cadeira de rodas e precisava esperar pela ajuda de colegas.
Professores idosos ou com problemas de saúde também reclamavam das escadarias.
Desde que Vaz decidiu resolver o problema até o início da instalação do elevador, há alguns dias, três anos se passaram.
Todo esse tempo foi consumido no preparo de quatro - sim, quatro - licitações para que a obra fosse contratada. Se tudo der certo, o elevador começa a funcionar em novembro, quase quatro anos após a decisão de instalá-lo.
A aluna da cadeira de rodas não usufruirá do equipamento.
"Ela desistiu em seis meses alegando que o curso era pesado. Mas acredito que a dificuldade de locomoção colaborou para a desistência", diz Vaz.
Não foi a falta de dinheiro, mas os obstáculos para gastá-lo, que transformou a licitação do elevador da Unicamp em uma novela.
A morosidade característica do serviço público brasileiro é resultado de uma mi ríade de formalidades criadas com o objetivo - nobre e imprescindível, é verdade - de evitar o mau uso do dinheiro do contribuinte.
O lado perverso desse excesso de controles é uma burocracia que, além de torturar empresas e cidadãos, cria embaraços para os próprios gestores públicos.
Obras e serviços se arrastam por anos antes de começar efetivamente a ser executados. Mesmo depois de iniciados, são frequentemente interrompidos sob suspeita de falcatruas, por ações movidas por quem discorda do projeto ou mesmo por concorrentes vencidos nas licitações públicas - a Justiça é atulhada por pedidos desse tipo.
O enrosco chega ao ponto de enervar o burocrata mais poderoso do país.
Nos últimos meses, em várias ocasiões o presidente Luiz Inácio Lula da Silva manifestou publicamente seu inconformismo com a lentidão de obras questionadas por órgãos como o Ministério Público Federal, o Ibama e o Tribunal de Contas da União. Num gesto extremo, há um mês, Lula usou o poder do cargo para liberar o repasse de verbas e autorizar a retomada de quatro grandes obras da Petrobras que haviam sido brecadas pelo TCU sob suspeita de irregularidades.
Trata-se, obviamente, da solução errada - o TCU tem a obrigação de cuidar para que abusos sejam barrados -, mas o episódio serviu para trazer à luz o imbróglio que temos na administração pública.
Talvez nenhum outro país tenha tantas regras e controles sobre a gestão estatal.
Nossos administradores são obrigados a preencher toneladas de papel a cada decisão, por mais corriqueira que seja.
No entanto, o que não faltam são evidências de que a corrupção é endêmica. No ranking da ONG Transparência Internacional, fomos descritos como o 75o país mais corrupto do mundo. Nosso sistema nos deixa no pior dos mundos - por um lado, a infinidade de controles não impede que os corruptos nos roubem à luz do dia; por outro, não permite que os bons gestores façam seu trabalho com um mínimo de eficiência. Assim fica difícil.
No dia a dia do setor público, o exagero de exigências para cumprir regras muitas vezes arcaicas atravanca o trabalho dos mais diversos órgãos.
A quantidade de papel produzida pela concorrência para a construção de um hospital na cidade capixaba de Serra, vizinha a Vitória, dá ideia do grau de formalismo da administração pública brasileira.
Cada uma das quatro construtoras concorrentes apresentou entre 500 e 1 000 páginas só de documentos de habilitação, ou seja, papéis para provar que não devem nada ao Fisco, que não estão à beira da falência e que possuem capacidade técnica para realizar o trabalho. Anselmo Tozi, secretário de Saúde do Espírito Santo, resume bem a situação: "Passamos mais tempo lidando com a burocracia de licitações e concursos públicos do que planejando, definindo metas e medindo o resultado do serviço prestado à população".
Apenas a concorrência para a execução da obra do hospital de Serra levou quase um ano. Se o governo tivesse de licitar também o projeto - doado pela siderúrgica Arcelor Mittal -, a construção, iniciada em setembro, ainda estaria longe de começar.
Fonte: Revista EXAME
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